14 de jan. de 2010

ARTIGO

O farelo da vida

Deputado Roberto Rocha (MA)




“É difícil defender só com palavras a vida”, diz o poema de João Cabral que poderia ser o emblema da trajetória de Zilda Arns, cuja partida nesta semana deixou-nos o legado de uma existência dedicada a ajudar os semelhantes.
Quantos milhões de brasileiros estão vivos hoje, sobreviventes da fome e da miséria, graças à ação da Pastoral da Criança e dos seus milhares de voluntários?

Zilda Arns nos ensinou o verdadeiro sentido da palavra missão e foi precursora na montagem de uma rede social de cunho humanista, orientada para preservar o bem mais precioso e desamparado do país, nossas frágeis crianças predestinadas às estatísticas de mortalidade infantil.

Tantas crianças franzinas, severinas como diz o poema, mas que trazem “a marca de humana oficina” que o trabalho da Pastoral cuidou de fazer vingar por meio de uma tecnologia social simples, quase rústica, a chamada farinha múltipla, um complemento alimentar que operou o milagre bíblico da multiplicação do pão da vida.

E com que grandeza moral e desprendimento Zilda Arns foi a pastora de tantas almas, sem sucumbir ao proselitismo e sem cobrar recompensas pessoais. Essa a sua maior lição de vida. Num tempo em que os problemas parecem ser maiores que as soluções, Dna Zilda, como era carinhosamente chamada, mostrou que não somos vítimas de um destino traçado.

A Pastoral surgiu em 1983, “bela como um sim, numa sala negativa”, desabando as taxas de mortalidade da cidade de Florestópolis, no Paraná, de 127 para 20 por mil, em apenas dois anos. Zilda Arns mostrou o caminho e começou a construir a rede que conta hoje com 260 mil voluntários que acompanham 1,8 milhão de crianças e perto de cem mil gestantes em mais de quatro mil municípios. A Pastoral estendeu sua ação para mais de vinte países, dentre eles o Haiti, vitimado pela tragédia do terremoto.

Graças ao trabalho de Zilda Arns o Brasil está apto a atingir um dos oito objetivos de Desenvolvimento do Milênio da ONU, que é o de diminuir as taxas de mortes de crianças em dois terços até 2015.

Num tempo em que se propõem soluções grandiloquentes para os nossos graves problemas, temos o testemunho vivo de uma ação exitosa que mostrou que a solidariedade, o compartilhamento de informações, a ampliação do conhecimento, tudo isso compõe uma ética pública que devemos louvar e enaltecer.

Uma ética que não é artificiosamente construída pela hegemonia da informação, pela intimidação ou pela força. Fica essa lição de uma grande brasileira que com os farelos garantiu que a oficina da vida pudesse desfiar o seu fio.

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